Nesta época eu estava conhecendo melhor
um garoto que eu estava muito afim de namorar. A gente se conhecia a
mais de um ano, mas na ocasião tínhamos começado a flertar a
pouquíssimo tempo. Ele parecia estar muito interessado em mim e eu
estava interessado nele coisa e tal, tal e coisa. Pois bem, decidimos
marcar de sair para um passeio à toa para jogar um papo fora e nos
divertir. Em outras palavras, fomos fazer um rolê
por Juiz de Fora.
O passeio foi ótimo. Comemos um mega
pacote de batatas chips, bebemos e a hora voou. Conversamos muito e
rimos bastante. Nada muito fora do que planejamos, até decidirmos
voltar para as nossas casas.
De boas na madrugada, altas horas da
matina, esperando o baú passar encontramos com Ana Paula no ponto de
ônibus. Ana Paula era uma mulher negra, gorda, aparentemente de 30 a
40 anos e parecia ser uma cidadã em situação de rua. Com
dificuldade, balbuciava alguma coisa e apontando para o pescoço
gordo dizia que havia um osso de galinha entalado na garganta, o que
estava lhe causando muita dor e ânsia de vômito.
Ela nos contou uma história de que
estava voltando do HPS, um hospital público de Juiz de Fora. Sem
documentos, pois segundo Ana Paula ela havia deixado tudo em casa,
ela tentava ser atendida, mas não conseguia. Além do mais, para
piorar sua situação, ela disse que desistiu do HPS, pois uma
enfermeira dizia que ela “estava
fazendo gracinha” e que Ana
Paula não tinha nada, que ela estava mentindo. Por conta disso ela
estava lá, no ponto de ônibus pedindo ajuda para ser atendida ou
pelo ao menos conseguir voltar para casa.
Eu e o affair ficamos super
preocupados, olhamos para a cara de desespero que ela fazia e já
começamos dizendo quase em coro: “COMASSIM?!?!?! Não te deram
atendimento?”. Naquele momento, Ana Paula começou a passar muito
mal ao ponto de quase vomitar. Parecia que ia desmaiar e apoiou em
cima de mim. Estava com fome e dizia que sentia muita dor no pescoço.
Levamos ela para a portaria de um outro hospital que ficava ali em
frente de onde estávamos. Levamos ela na Santa Casa de Misericórdia.
Então fomos lá, eu e o meu pretendente
a namoro. Nós dois estávamos super preocupados, mas ele não podia
ficar muito tempo lá comigo. Ele estava atrasado para poder voltar
para casa da vovozinha dele. Na ocasião o rapaz que eu estava
gostando era menor de idade, tinha 17 anos, prestes a completar 18
ainda. Por conta disso ele não pode ficar muito mais tempo comigo.
Então ficamos eu e Ana Paula no pronto socorro. Ela sentada nos
bancos da recepção e eu tentando resolver o pepino com a
recepcionista.
Só que a Santa Casa é um hospital
particular. Fui mesmo assim, pois sei que sendo privado ou não, o
atendimento não pode ser negado e quem paga a conta depois é o SUS
quando se trata de uma emergência. Entretanto não foi tão simples
assim. Comecei a discutir na portaria para exigir o caralho do
atendimento, pois estavam negando na cara dura. A recepcionista não
chamava ninguém. Então liguei para o SAMU para pedir orientações.
O SAMU reiterou: ANA PAULA TINHA QUE SER ATENDIDA E O SOCORRO NÃO
PODIA SER NEGADO, SE O HOSPITAL NÃO ATENDESSE EU PODERIA CHAMAR A
POLÍCIA. Foi o que disse a atendente do SAMU. Ao desligar o meu
telefone, Ana Paula cai do banco onde ela estava sentada na recepção
e fica desacordada.
Foi assim que o espírito de satã do
barraco mico-leão-dourado 2017 incorporou em mim e disse no pronto
socorro:
— SE ANA PAULA NÃO FOR ATENDIDA EU VOU
CHAMAR A POLÍCIA POR CAUSA DESSA OMISSÃO DE SOCORRO — Caps Lock
porque eu sou de afrontar.
Então um enfermeiro veio... e não fez
porra nenhuma. Continuei o escândalo até o médico em plantão
chegar. E o médico chegou. Exigi para ele verificar a pressão, os
batimentos de Ana Paula e o caralho a quatro. O médico verificou.
Tava tudo normal, mas Ana Paula estava desmaiada.
Eu e a classe média brasileira chocada
daquele hospital particular "sem fins" lucrativos da Igreja
Católica colocamos Ana Paula na cadeira de rodas. O médico disse
que aparentemente estava tudo bem, mas se ela estiver com
dificuldades de respirar ela precisa de uma endoscopia de urgência.
Então liguei para o SAMU de novo e pedi
um carro para tirar ela de lá. O SAMU disse que não iria chamar o
carro até o hospital, pois a Santa Casa tinha a obrigação de
atender. Então o médico no pronto socorro disse: “aqui não tem
como fazer endoscopia, não temos equipamento aqui para isso” —
olha que filho da puta, pra cima de moi
um hospital particular não ter equipamento? —. Então a endoscopia
só poderia ser feita no HPS onde havia um gastro de plantão.
Com Ana Paula desfalecida, a coloquei
numa cadeira de rodas rodas que briguei para a Santa Casa me
emprestar. A levei ela até o HPS que fica logo em frente e de onde
primeiramente ela saiu sem atendimento. Atravessei a Av. Rio Branco a
noite, de madrugada, a empurrando e correndo com a cadeira de rodas
para o HPS.
Chegando no HPS eu já estava pronto
para fazer mais um barraco. Disse para a recepcionista que ela estava
precisando de uma endoscopia de urgência, Ana Paula poderia estar
com uma obstrução na laringe — ui, toda grey's anatomy eu!
A moça da recepção já começou a
perguntar sobre outras coisa e de repente eu escuto...
— ANA PAAAAAAULA!!! O QUE É ISSO?!?!?!
Uma enfermeira lá de dentro gritou por
Ana Paula. Ana Paula desfalecida e desmaiada nem tchum pra niguém.
Ficou ali, como estava e sem escutar ninguém. Então aparece uma
mulher baixinha, branca, de cabelos negros e lisos, com as duas mãos
na cintura. Era a enfermeira que aparecera na portaria. Então a
enfermeira vira pra mim e diz:
— Moço, você quem trouxe a Ana Paula?
— Sim! — Eu disse.
— HAHAHAHA, Ana Paula fugiu da
psiquiatria daqui do HPS. Se preocupa não moço, ela finge isso aí
mesmo. Ela diz que tem ossinho na garganta e às vezes até
eplepsia. Não é nada nada, mas obrigado, moço.
Fiquei atônito. Eu tinha pegado uma
cadeira de rodas emprestada do hospital, comprado um barraco
monstruoso, chocado a já tão chocável classe média desse país
que vivo e Ana Paula lá... de boas. dando uns rolê na cadeira de
rodas, que por acaso eu estava empurrando.
Me senti trouxa, sim. Mas pelo menos
paramos o trânsito pela avenida principal carregando uma louca na
cadeira de rodas.
O final até que foi feliz. Ana Paula
não só teve atendimento, como já era internada. Só que ao invés
da gastrologia, mas ela foi parar na psiquiatria.