14 junho, 2018

O OSSO DE GALINHA



Nesta época eu estava conhecendo melhor um garoto que eu estava muito afim de namorar. A gente se conhecia a mais de um ano, mas na ocasião tínhamos começado a flertar a pouquíssimo tempo. Ele parecia estar muito interessado em mim e eu estava interessado nele coisa e tal, tal e coisa. Pois bem, decidimos marcar de sair para um passeio à toa para jogar um papo fora e nos divertir. Em outras palavras, fomos fazer um rolê por Juiz de Fora.
O passeio foi ótimo. Comemos um mega pacote de batatas chips, bebemos e a hora voou. Conversamos muito e rimos bastante. Nada muito fora do que planejamos, até decidirmos voltar para as nossas casas.
De boas na madrugada, altas horas da matina, esperando o baú passar encontramos com Ana Paula no ponto de ônibus. Ana Paula era uma mulher negra, gorda, aparentemente de 30 a 40 anos e parecia ser uma cidadã em situação de rua. Com dificuldade, balbuciava alguma coisa e apontando para o pescoço gordo dizia que havia um osso de galinha entalado na garganta, o que estava lhe causando muita dor e ânsia de vômito.
Ela nos contou uma história de que estava voltando do HPS, um hospital público de Juiz de Fora. Sem documentos, pois segundo Ana Paula ela havia deixado tudo em casa, ela tentava ser atendida, mas não conseguia. Além do mais, para piorar sua situação, ela disse que desistiu do HPS, pois uma enfermeira dizia que ela “estava fazendo gracinha” e que Ana Paula não tinha nada, que ela estava mentindo. Por conta disso ela estava lá, no ponto de ônibus pedindo ajuda para ser atendida ou pelo ao menos conseguir voltar para casa.
Eu e o affair ficamos super preocupados, olhamos para a cara de desespero que ela fazia e já começamos dizendo quase em coro: “COMASSIM?!?!?! Não te deram atendimento?”. Naquele momento, Ana Paula começou a passar muito mal ao ponto de quase vomitar. Parecia que ia desmaiar e apoiou em cima de mim. Estava com fome e dizia que sentia muita dor no pescoço. Levamos ela para a portaria de um outro hospital que ficava ali em frente de onde estávamos. Levamos ela na Santa Casa de Misericórdia.
Então fomos lá, eu e o meu pretendente a namoro. Nós dois estávamos super preocupados, mas ele não podia ficar muito tempo lá comigo. Ele estava atrasado para poder voltar para casa da vovozinha dele. Na ocasião o rapaz que eu estava gostando era menor de idade, tinha 17 anos, prestes a completar 18 ainda. Por conta disso ele não pode ficar muito mais tempo comigo. Então ficamos eu e Ana Paula no pronto socorro. Ela sentada nos bancos da recepção e eu tentando resolver o pepino com a recepcionista.
Só que a Santa Casa é um hospital particular. Fui mesmo assim, pois sei que sendo privado ou não, o atendimento não pode ser negado e quem paga a conta depois é o SUS quando se trata de uma emergência. Entretanto não foi tão simples assim. Comecei a discutir na portaria para exigir o caralho do atendimento, pois estavam negando na cara dura. A recepcionista não chamava ninguém. Então liguei para o SAMU para pedir orientações. O SAMU reiterou: ANA PAULA TINHA QUE SER ATENDIDA E O SOCORRO NÃO PODIA SER NEGADO, SE O HOSPITAL NÃO ATENDESSE EU PODERIA CHAMAR A POLÍCIA. Foi o que disse a atendente do SAMU. Ao desligar o meu telefone, Ana Paula cai do banco onde ela estava sentada na recepção e fica desacordada.
Foi assim que o espírito de satã do barraco mico-leão-dourado 2017 incorporou em mim e disse no pronto socorro:
— SE ANA PAULA NÃO FOR ATENDIDA EU VOU CHAMAR A POLÍCIA POR CAUSA DESSA OMISSÃO DE SOCORRO — Caps Lock porque eu sou de afrontar.
Então um enfermeiro veio... e não fez porra nenhuma. Continuei o escândalo até o médico em plantão chegar. E o médico chegou. Exigi para ele verificar a pressão, os batimentos de Ana Paula e o caralho a quatro. O médico verificou. Tava tudo normal, mas Ana Paula estava desmaiada.
Eu e a classe média brasileira chocada daquele hospital particular "sem fins" lucrativos da Igreja Católica colocamos Ana Paula na cadeira de rodas. O médico disse que aparentemente estava tudo bem, mas se ela estiver com dificuldades de respirar ela precisa de uma endoscopia de urgência.
Então liguei para o SAMU de novo e pedi um carro para tirar ela de lá. O SAMU disse que não iria chamar o carro até o hospital, pois a Santa Casa tinha a obrigação de atender. Então o médico no pronto socorro disse: “aqui não tem como fazer endoscopia, não temos equipamento aqui para isso” — olha que filho da puta, pra cima de moi um hospital particular não ter equipamento? —. Então a endoscopia só poderia ser feita no HPS onde havia um gastro de plantão.
Com Ana Paula desfalecida, a coloquei numa cadeira de rodas rodas que briguei para a Santa Casa me emprestar. A levei ela até o HPS que fica logo em frente e de onde primeiramente ela saiu sem atendimento. Atravessei a Av. Rio Branco a noite, de madrugada, a empurrando e correndo com a cadeira de rodas para o HPS.
Chegando no HPS eu já estava pronto para fazer mais um barraco. Disse para a recepcionista que ela estava precisando de uma endoscopia de urgência, Ana Paula poderia estar com uma obstrução na laringe — ui, toda grey's anatomy eu!
A moça da recepção já começou a perguntar sobre outras coisa e de repente eu escuto...
— ANA PAAAAAAULA!!! O QUE É ISSO?!?!?!
Uma enfermeira lá de dentro gritou por Ana Paula. Ana Paula desfalecida e desmaiada nem tchum pra niguém. Ficou ali, como estava e sem escutar ninguém. Então aparece uma mulher baixinha, branca, de cabelos negros e lisos, com as duas mãos na cintura. Era a enfermeira que aparecera na portaria. Então a enfermeira vira pra mim e diz:
— Moço, você quem trouxe a Ana Paula?
— Sim! — Eu disse.
— HAHAHAHA, Ana Paula fugiu da psiquiatria daqui do HPS. Se preocupa não moço, ela finge isso aí mesmo. Ela diz que tem ossinho na garganta e às vezes até eplepsia. Não é nada nada, mas obrigado, moço.
Fiquei atônito. Eu tinha pegado uma cadeira de rodas emprestada do hospital, comprado um barraco monstruoso, chocado a já tão chocável classe média desse país que vivo e Ana Paula lá... de boas. dando uns rolê na cadeira de rodas, que por acaso eu estava empurrando.
Me senti trouxa, sim. Mas pelo menos paramos o trânsito pela avenida principal carregando uma louca na cadeira de rodas.
O final até que foi feliz. Ana Paula não só teve atendimento, como já era internada. Só que ao invés da gastrologia, mas ela foi parar na psiquiatria.

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